Depois de 2 meses sem escrever essa newsletter, cá estou eu de volta. E vou admitir que este texto demorou muito pra ser escrito. Como é difícil parar e recomeçar, meodeus! Pra além do fato de ter agora mais um enorme compromisso (Zoé tem 2 meses e mama exclusivamente no peito), sinto que perco com muita rapidez a habilidade de organizar os pensamentos para escrever. Demoro, acho tudo ruim, refaço. Parar e recomeçar é sempre difícil pra mim.
E, nesse vai e volta de pensamentos, comecei a escrever algumas coisas: tenho vários textos começados e nenhum finalizado haha. Mas, na semana passada, recebi uma enxurrada de marcação em um vídeo da série “A Diplomata", da Netflix, e resolvi escrever sobre isso.
(a série, aliás, é um prato cheio pra minha pesquisa de moda e gênero, e bem gostosinha de assistir, recomendo!)
Mas, antes de prosseguir, a sinopse oficial:
“Em meio a uma crise internacional, uma diplomata de sucesso precisar lidar com a carreira de embaixadora e um conturbado casamento com um político influente.”
Dei muita sorte porque eu não sou nada boa de lançamento de série, tô sempre atrasada e nunca consigo analisar os figurinos enquanto o hype tá rolando – e também não consigo falar de figurino se eu não vi a série inteira, ou ao menos profundamente, acho que não faz sentido. Mas, tcharã!, dessa vez eu consegui! Eu já tinha visto a primeira temporada de “A Diplomata e tava ansiosa esperando a segunda. Dei uma corrida aqui nos episódios pra chegar na fatídica cena que todo mundo me enviou e voilà, temos uma news!
Enquanto eu via essa cena, fiquei pensando nas milhares de camadas que o discurso da série tem e é isso que eu vou fazer aqui neste texto. Pensar sobre essas camadas e mostrar como meus dois temas (moda-gênero e consumo feminino) não existem um sem o outro.
Leitura 1 - a mais superficial
A leitura mais superficial é dizer que esse papo é sobre como imagem importa, um prato cheio pra consultora de estilo justificar o próprio trabalho. Mas eu, mesmo sendo consultora de estilo, sempre achei esse papo, assim, solto, muito superficial.
É claro que imagem importa, mas não importa do jeito que o conservadorismo quer fazer com que a gente acredite que importa. Ou seja: imagem importa, mas não é por isso que todo mundo precisa se vestir bonitinha pra ser promovida no trabalho.
Imagem importa porque não há meios de olhar pra algo e não ter uma opinião, um pensamento sobre aquilo – seja na hora de escolher sua roupa, seja na hora de interpretar o outro. Todo mundo está pensando, mesmo quem diz que não está. A diferença é como cada um pensa. A diferença é qual o intertexto de cada um.
A roupa que a gente veste está diretamente ligada à cultura em que estamos inseridas e isso é político. Nos dá respostas sociais sobre poder, dinheiro, performance de gênero, classes sociais… e isso nos leva à segunda camada.
Leitura 2 - tem muito mais nas entrelinhas
A conversa da vice-presidente com a possível candidata a substituí-la é totalmente sobre gênero. É impensável essa conversa no universo masculino. O intertexto desse diálogo é: como você, mulher, pretende navegar esse universo de extremo poder aliado à economia da atenção? Onde tudo é sobre fisgar a atenção das pessoas em poucos segundos? Onde ninguém para para ouvir ninguém, que dirá uma mulher em cargo de poder?
O tal diálogo é um dedo na ferida sobre como até hoje não existe um espaço de poder confortável para mulheres. Como ainda não é natural ver mulheres governando o país mais poderoso do mundo – estão as eleições norte-americanas pra nos provar.
Os homens vestem terno e fim de papo, no máximo pensam sobre a gravata e a meia, mais nada. Tá dado, tá resolvido. Já para as mulheres é um eterno desconforto, uma equação sem resposta certa. A roupa como um símbolo dessa desigualdade de gênero (aka, minha pesquisa da vida toda haha).
E, mesmo sendo essa encruzilhada de pensamentos, a personagem que pretende ser vice-presidente vai precisar, sim, escolher o que vestir e tentar usar isso como uma estratégia de comunicação: pra ser vista, ouvida, levada em consideração, lembrada.
Quando a gente entende que a roupa é também (e não só) um símbolo que carrega toda a nossa cultura, a gente entende melhor por que as mulheres compram o que compram. O que as mulheres escolhem, repetem. Por que um produto dá mais certo que outro, por que uma campanha funciona melhor que outra.
Se a roupa, no caso da série, mostra como o espaço de poder não é feito para caberem mulheres, ela também mostra que não tem solução via look. A solução é via cultura, via política. É muito maior. A roupa pode ajudar ou atrapalhar, é parte de uma estratégia de comunicação para quem, como ela, precisa se comunicar com muitas pessoas em pouco tempo. Mas a conversa maior precisa passar por cultura – e é pensando em cultura, gênero, o porquê das pessoas se comportarem de um jeito ou de outro que a gente entende o que e por que as mulheres compram e comprarão uma coisa em detrimento de outra.
Na conversa, Grace Penn tem uma leitura pragmática: com essa imagem não vai ser possível ser vice-presidente. E, se você acredita que basta vestir um terno, assim como os homens fazem, você está enganada. Não vai funcionar.
Leitura 3 - e o espaço fora da tela
O que não está dito explicitamente na série, mas que eu amaria discutir aqui, é como o fato de a personagem ter um enorme descaso pela roupa que usa pra trabalhar é também um jeito de o figurino contar como ela tem também um enorme descaso pelas regras e pela mise-en-scène do poder.
Ela atravessa cargos, liga pra quem ela não poderia, desobedece acordos, passa por cima de formalidades, usa o marido para conseguir acessar mais informações… Personagem clássica, aliás, desse tipo de série/filme, né?
Rebelde, mas sempre genial no fim do dia: de Tom Cruise em “Missão Impossível” a Claire Danes em “Homeland”, todos se encaixam no mesmo arquétipo. A diferença é que aos homens é dado o poder sexual, são super sedutores, transam com todas as personagens e são criados para garantir suspiros na audiência, enquanto as mulheres ficam sempre no limite da loucura.
Por fim, durante toda a série, Kate tem uma relação de superioridade em relação à roupa (e também aos protocolos e hierarquias): se ela e a missão dela está acima das formalidades, por que ela pensaria no que vestir?
Vestir uma calça com um clipes segurando o fecho é um jeito de dizer que você é tão melhor que sequer precisa se preocupar com assuntos mundanos. Não se importar é um privilégio e também um discurso.
Nesse sentido, o figurino e a make são muito bem construídos para que a gente sinta isso desde o episódio 1. Mesmo que de uma maneira menos óbvia e clara pra quem não estuda o tema, como eu. A personagem é confusa, tá sempre mal ajambrada, com a roupa desorganizada (ou amassada, ou mal passada, ou com caimento errado), com o cabelo despenteado.
Se estivéssemos vendo um filme francês, só a imagem que ela constrói pra si já seria suficiente. Mas, sendo uma série norte-americana, ela precisa ser óbvia na sua entrega, ela precisa falar sobre isso. Ela reclama das roupas, dos códigos, ela pede pro marido dizer se a roupa está boa ou não porque ela tá sempre pensando algo, em tese, mais importante que isso.
E essa cena vem, justamente, pra puxar o tapete da protagonista. Um jeito de dizer: você se acha melhor que isso, que você está além da roupa, mas você não está. É também um confronto direto de uma mulher mais velha, mais experiente e com mais poder, com uma novata que acha que já entendeu tudo.
E aqui eu queria fazer um parênteses importante. Roupa importa. O jeito que a gente se apresenta pro mundo importa, e é mentira que a roupa que a gente veste não interfere no nosso trabalho. É claro que interfere.
Pra quem tem interesse no assunto, vale estudar um pouco de antropologia do consumo pra entender isso na prática. Só pra pensar rapidamente: foi justamente alegando que o que a gente veste interfere no nosso trabalho que mulheres ao redor do mundo protestaram contra obrigatoriedade de salto alto ou de maquiagem. É difícil demais ser eficiente se você não consegue se locomover com facilidade.
Tem uma cena no início da segunda temporada de “A Diplomata”, inclusive, que ilustra isso muito bem: ela está em uma festa de vestido logo, vermelho. Uma explosão acontece e ela precisa voltar pro trabalho de diplomata do dia a dia. A primeira coisa que ela faz? Pedir o terno de um homem, no meio da festa, e trocar de roupa. Ela precisou trocar de roupa para fazer o que precisava ser feito. Se roupa não importasse, ela teria ido de vestido pro consulado, pro hospital… mais claro que isso, impossível.
Passadas as eleições municipais aqui no Brasil, além das dos EUA, como já citei, não dá pra deixar de dizer que esse papo é também sobre como a imagem sempre foi importante, sim, mas é ainda mais agora, na era da economia da atenção, com a política acontecendo com força na internet e nas redes sociais. Onde ninguém para pra ouvir as propostas de um candidato, onde o voto está diretamente ligado ao que cada um representa e aparenta representar.
A maneira como a gente se veste sempre contou uma história, porém, quando não temos tempo de falar e de sermos ouvidas, a roupa importa ainda mais. Pro bem e pro mal, goste a gente ou não.
P.S: Agradecimento especial pra Liv Brandão, que editou essa news e, sem ela, eu teria enrolado e nunca enviado <3.
Roupa importa. Trabalhei em multinacional desde os 14 anos. Minha imagem nunca foi relevante pro meu cargo. Mas não tem um momento da minha vida onde a minha roupa não foi motivo de comentários de senhores. Nunca fui a Iris Apfel. Mesmo assim tudo o que eu usei já foi comentado. Eu tenho quase 40 agora. Ainda comentam. Amo que a Thais pontuou a cena como "você se acha melhor que isso, que você está além da roupa, mas você não está". É isso o tempo todo. Toda vez que alguem pergunta da onde é a sua roupa num tapete vermelho. Toda vez que vc entra na sala de reunião e um cara comenta o seu brinco. Um jogo secreto de dizer que roupa não importa mas nunca tirar a pauta da mesa. Te reduzir a uma imagem. Te associar a algo que não importa. Associar a mulher a objetos e não a feitos...
parei tudo o que eu estava fazendo para ler esse texto, Thais. Perfeito. Estou aqui, tentando trabalhar, me recuperando de um luto e lembrando que voltei para casa para trocar a roupa com que ia para o velório do meu pai, que me preocupei com a roupa que estava usando na emergência do hospital de madrugada. Porque, talvez infelizmente, roupa importa.