Tinha dito que ia pular a polêmica do uniforme brasileiro nas Olimpíadas, o assunto já até ficou velho - paciência, o tempo da newsletter é mesmo outro. Mas acabei voltando atrás e puxando esse assunto aqui porque achei que tinha um ângulo diferente pra olhar pra esse mesmo tema. Aliás, eu gosto muito de olhar pras coisas depois que elas passam da "febre" - seja roupa, seja uma polêmica. Nessa news eu vou falar também sobre conservação de acervos, Herchcovitch e indústria de moda brasileira. Prepara que é daquelas news enormes, que me demandaram um tempão de escrita, mas que (eu espero!) seja um conteúdo que não se descarta em 30 segundos.
Falei algumas vezes que eu tava com preguiça desse tema dos uniformes porque absolutamente todo mundo falou sobre isso: pessoas legais de moda, pessoas que querem viralizar com qualquer tema e nem sabe nada sobre o assunto, pessoal do esporte, teve de tudo, não precisava de mim. Mas aí eu me irritei quando li a frase "Não é Fashion Week, são os jogos olímpicos", dita pelo presidente do COB. Me irritou porque qualquer pessoa que trabalha com moda no Brasil está (ou deveria estar) EXAUSTA desse pouco caso, desse preconceito, dessa falta de inteligência. Imagino que os atletas também estejam exaustos, não pelo look em si, mas pela falta de cuidado que temos com eles.
Bom, é claro que não é Fashion Week porque Olimpíadas É INFINITAMENTE MAIOR QUE FASHION WEEK, meu anjo. Pra indústria de moda e pra cultura de moda brasileira o Paris Fashion Week é menos importante que as Olimpíadas, sim. Pelo fato simplíssimo que apenas um nicho minúsculo dos brasileiros sabe o que é PFW, dirá acompanhar, enquanto Olimpíadas todo mundo vê, todo mundo quer saber. É nas olimpíadas que a gente tem a chance de fomentar e movimentar a indústria de moda brasileira, que é o que faz a maioria dos outros países, inclusive. É a chance de ver e ser visto pelo mundo inteiro, de voltar os olhos para nossa sofrida moda nacional*, sempre jogada pra escanteio.
Swarovski não resolve colocar 10 mil cristais no uniforme da Simone Biles sendo que "nem é Fashion Week" .
Nessa matéria do BOF eles dizem como esse ano foi impressionante a quantidade de marcas de moda investindo pesado nas olimpíadas - e vai desde o grupo LVMH até marcas menores e indies.
Coperni também acha que, se bobear, é tipo Fashion Week, sim.
Eu poderia ainda falar do Pharrell Williams, que é músico e também diretor criativo da Louis Vuitton, carregando a tocha e depois servindo look. Vale aqui, inclusive, falar sobre as medalhas das Olimpíadas, que foram feitas pela joalheria Chaumet que pertence a quem? Ao grupo LVMH. E essas mesmas medalhas ficam armazenadas em baús Louis Vuitton. LVMH, inclusive, dominou as Olimpíadas. Onipresente.
IMAGENS:
Poderia falar também dos vários conteúdos sobre moda que foram produzidos: seja pela Vogue, pela Elle, por canais internacionais. Mas nada disso parece comover ninguém porque a dura realidade é: somos um país sem cultura de moda. Parece que moda não importa, mesmo sendo indústria - e é sobre isso que eu mais queria falar hoje. Parece que moda é só bom gosto ou pior: parece que moda é só uma futilidade que a gente é obrigada a encarar pra não sair pelada na rua - ou nas Olimpíadas. E não, não é.
É estúpido ignorar o que esse uniforme poderia ter feito, em dinheiro e relevância, pra indústria de moda nacional. Muita gente falou sobre cultura, então não vou entrar nesse tópico, mas meodeus, moda é também negócio. E, pensando só em negócio, já seria inaceitável que um fast fashion faça os uniformes. Certeza que alguém vai vir me lembrar que a C&A também já fez uniformes, mas vou rebater dizendo que o Herchcovitch já foi convidado pra esse trabalho e é por esse caminho que deveríamos estar indo.
Vocês viram que a Adidas criou com a grafiteira Criola o uniforme do skate?
E que, CLARO, ele tá a venda no site da marca?
Aqui tem cultura - trazer alguém que é parte da cultura, que produz cultura, pra fazer da sua brasilidade; e tem também negócio - produtos sendo vendidos enquanto atletas usam essas peças pra ganhar medalhas. Perfeito.
Voltando ao meu ponto central: fast fashion não cria moda, não cria nada. Fast Fashion, por definição, faz uma moda rápida, inspirada no que já foi desfilado, criado, pensado. Fim. É falta de conhecimento primário (e excesso de interesse político) deixar uma fast fashion "criar" alguma coisa. Não é à toa que Riachuelo tem roupas para todos os estilos porque não é função de marca de departamento ter estilo próprio, a ideia é atender a necessidade dos consumidores, vender em quantidade. Isso é roupa, indústria, pensamento de varejo. Quando existe uma collab, por exemplo, Stella McCartney para C&A, é justamente para ter um criador de moda + uma rede varejista capaz de produzir esses itens em escala.
Meus 2 centavos sobre o uniforme é esse: um monte de dinheiro jogado pro alto porque não conseguimos aceitar que moda é indústria - além de cultura. E é também nessa linha de pensamento que muitaaaaaas marcas brasileiras grandes vão à falência, acreditando que moda é qualquer varejo, que podem ter uma equipe super sênior, mesmo que não saibam nada do mercado de moda. Uma tristeza e uma loucura. Em qualquer outro segmento, os grandes grupos, quando compram uma marca menor, pensam "precisamos cuidar do segredo industrial disso aqui" que, nada mais é, que pessoas que sabem o que tão fazendo e entendem das especificidades daquele negócio. Mas em moda, não. Em moda vale todo mundo chegar com o nariz em pé, cheio de certeza, mandando e desmandando, mesmo sem saber absolutamente nada sobre a indústria ou sobre o consumo ou sobre a cultura. Claro que a Riachuelo fez os uniformes, num acordo de muito dinheiro, porque como não temos cultura de moda, essas monstruosidades passam sem gritaria. E, quando dá muito errado, ainda somos obrigados a ouvir "Não é Fashion Week".
Vale inclusive ver esse vídeo do Herchcovitch no Roda Viva - na minutagem 1'13" ele fala sobre como moda precisa ser estudada. De que precisa ter repertório. Ele tá falando de crítica de moda, mas vale pra todo o setor. Moda não é bom gostismo. Moda não é qualquer varejo. Moda não é consumida da mesma maneira que geladeira.
E aí, vou pegar esse gancho do Herchcovitch pra te perguntar: você viu o documentário sobre ele na Max? Se não viu, veja. O filme começa mostrando o estilista abrindo seu acervo pessoal, com várias peças importantes criadas por ele ao longo dos anos. E eu acho uma TRAGÉDIA como aquelas estão guardadas. Não pelo Herchcovitch, naturalmente, que fez o melhor que pode. Mas pelo Brasil. É claro que a gente não tem cultura de moda porque se tivéssemos haveria um entendimento coletivo de que as peças que Herchcovitch tem guardadas no acervo são peças da história da moda brasileira. Assim como tem uma área do cinema que pensa em acervo, recuperação e conservação dos filmes nacionais (tem até matéria na faculdade), tem que existir esse pensamento também na moda. Se o sistema de moda é sobre a novidade, vale dizer que não existe novo sem história, sem olhar pro que já veio, com amnésia. Vi o documentário inteiro pensando no quão triste é sobrar pro estilista, pessoa física, o trabalho de conservação. Se fosse em países com tradição em moda, essas peças tinham sido guardadas como arte, que nem a gente vê o acervo da Dior no filme do Galiano, todo mundo mexendo com luva nas peças porque são tesouros nacionais. E, mesmo que a Dior deixe de existir, vamos visitar essas roupas no Louvre, aposto.
Parece que uma coisa não se conecta com a outra, mas, pra mim, tá tudo junto: a gente, enquanto sociedade, não entende a importância cultural e identitária da moda. Por consequência, não entendemos a importância financeira, de indústria. Daí fica com a Riachuelo uma função que ela não tem capacidade de cumprir, sobra pro Herchcovitch guardar as próprias peças de acervo, as pessoas chocadas sem nunca terem ouvido falar do Ocimar Versolato. Sobra na mesa uma penca de marcas de moda indo a falência, uma indústria completa e complexa (como é a indústria de moda no Brasil) completamente sem incentivo do governos pra seguir existindo, um monte de gente que não sabe nada de moda se colocando em cargos de moda e opinando sobre moda. Sobra uma Olimpíada que poderia, no mínimo, ser muito bem capitalizada e não será porque, afinal, não é Fashion Week.
Quando eu tinha a F.inc - minha empresa de consultoria de moda - as meninas me diziam que era preciso motivá-las sempre, toda semana. Eu, que não sei nada de gestão de pessoas e sou antiga, não sou dos discursos motivacionais, sempre respondi que "o fato da gente conseguir viver de moda no Brasil é a nossa maior motivação". Porque não, não é simples, não é fácil e uma imensa maioria finge que vive, mas tem pouca gente que, de fato, consegue. E não, influencer de moda (aqui nessa conversa) não conta porque influencer de moda não vive só de publi de moda, rola uma variedade de temas que fazem o business parar de pé.
*eu sei que pra maioria das pessoas é uma loucura pensar que a indústria de moda brasileira seja sofrida. Mas é. Vale olhar pra todas as marcas que vão à falência todos os anos, basta entender como é caro e difícil produzir por aqui, como os novos estilistas sofrem e como é difícil entrar nessa indústria. Se fosse uma indústria super bem sucedida, seria mais simples. E o problema não é o nosso consumo, temos um problema de super complexo de modelo de indústria + impostos + falta de incentivo. Mas isso é assunto pra outro dia e nem é a minha especialidade.
Moda não é minha área, mas como eu gosto de ver, ler e escutar... E como tenho amado o quanto as News nos fazem ficar tal como aquele emoji da cabeça explodindo. É tão cheia de repertorio e traz tantas implicacoes que dao pano pra manga. Parabéns pelo trabalho!
A Farage sempre afiadíssima! Amo como a escrita dela tem sempre uma carga da escrita acadêmica, com referências e embasamento. Isso é um bálsamo em tempos de redes sociais com todo mundo cheio de certezas baseadas apenas em achismos.