O Que a Roupa Diz - na política e na subjetividade dos corpos
Muito já se falou sobre a roupa da Kamala Harris, aproveitei e me dei a liberdade poética de fazer uma comparação maluca pra chegar a uma reflexão importante.
A gente fala da roupa da Kamala não é de hoje, mas ela nunca foi um ícone fashion, ela sempre se concentrou em ser a número 2 do Biden, usando roupas neutras, linhas retas, peças clássicas. Nessa época, a stylist dela era a famosérrima Karla Welch (de quem já falei muito sobre porque AMO o jeito que ela pensa moda). Karla Welch veste mil famosos, inclusive Justin e Hailey Bieber. Pense! Atualmente, a stylist dela é Leslie Fremar - que também veste famosos muito famosos, tipo Charlize Theron. Olha o tamanho que é o business "vestir político" nos EUA, é tão importante e grande (talvez maior) que vestir estrelas hollywoodianas. Até começar essa nova campanha, onde ela deixa de ser vice e concorre a presidência, ela só vestia designers americanas, mas mudou de estratégia semana passada quando apareceu com um terno Chloé para a Convenção Democrata.
No fundo, a única razão pela qual a gente fala do que Kamala veste é porque ela é mulher. É dificílimo pesquisar quais designers os últimos presidentes americanos usaram, eu nunca vi uma matéria sobre o stylist do Trump, por exemplo. Ninguém sabe direito se o terno que ele usou custou 3 mil ou 300 dólares, quais eram os sapatos e o relógio. E, honestamente, pro tanto de privilégio que ele carrega? Tanto faz. Um homem branco de terno já é a imagem de poder construída ao longo de séculos na nossa cabeça. Segundo esse texto precioso da Vanessa Friedmann no NYTimes, uma pesquisa feita nos EUA mostra que quando as pessoas imaginam a figura de um presidente, elas imaginam um homem branco de terno. Mesmo os EUA já tendo vivido (com imensa força de mídia, aliás) o governo Obama. Ou seja: pro homem branco conservador tá dado, não precisa esforço nenhum.
Mas hoje o assunto aqui é: Kamala Harris não me parece uma pessoa super preocupada com roupa e não me parece alguém disposta a abrir mão do conforto. Ao contrário da AOC, moda não é um tema sobre o qual ela fala abertamente. Kamala usa uns ternos meio parecidos entre si - blazers mais quadrados e calças mais largas, mistura com colar de pérolas ou camisas com laço, cores neutras. E é isso. All Star é uma marca registrada - que agora, naturalmente, tem aparecido menos, mas que fez um burburinho bom há uns anos.
Kamala se fez “no meio do caminho”, como defende Tammy Haddad:
traduzindo: “A única coisa importante para qualquer candidata é como você atravessa o palco. Você quer causar impacto, mas não muito impacto. Você quer roupas que sejam lisonjeiras, mas não muito lisonjeiras. Você quer parecer capaz de comandar, mas não muito mandona.”
E aqui a gente volta pra tecla onde eu sempre bato: não existe jeito certo de ser mulher na política, o jeito certo é ser homem branco. Mesmo Kamala Harris fazendo tudo “certo", tudo quanto é jornal falou do que ela veste. Ninguém falou do Trump. É difícilimo para as mulheres tirarem da mesa a conversa sobre moda, falarem do que importante naquele momento, mas honestamente acho que Kamala tem feito, estrategicamente, o melhor que dá.
Na paralela, temos aqui em São Paulo um candidato chamado Pablo Marçal. Eu não sabia nada sobre ele, até ano passado. Mas assim, resumindo rapidão: Marçal é um coach de extrema direita, com várias histórias super complicadas ao seu redor, inclusive com o PCC , sem nenhuma experiência política. Ele tá concorrendo pra prefeitura de São Paulo num discurso mais bolsonarista que o do próprio Bolsonaro: não sou político, sou empresário. Saí da pobreza, fiquei muito rico e sou capaz de resolver "tudo isso que está aí". Pensa numa conversa que é a cara de São Paulo? Voilà. E ele é um cara da internet, que entende totalmente como viralizar, como ter os cortes mais vistos enfim, um cara que eu abomino, mas sou obrigada a reconhecer que sabe muito bem o jogo que tá jogando. Quando penso no que veste o Marçal, eu fico furiosa porque ele realmente entendeu o que a esquerda brasileira se recusa há muitos anos: pensar estrategicamente na imagem (que é justamente o que a Kamala faz e eu defendi no parágrafo aí de cima).
No primeiro debate, Marçal colocou e tirou o boné algumas vezes. Foi o único sem blazer. A roupa mais ajustada, um look com cara de jovem. O boné tem uma simbologia muito forte, é sinônimo de casualidade, de informalidade e também de desrespeito com o status quo. Quem nunca ouviu o clássico "tira o boné pra sentar à mesa"?! Pensa aí quantos teatros e restaurantes proíbem boné?! Óbvio que é uma ideia mais conservadora e hoje em dia todo mundo usa boné em todo canto, mas existe alguma coisa mais antiga e conservadora que política? A política é tão antiga e conservadora que convence Boulos a usar uma roupa que ele não usaria na vida privada, que não tem nada a ver com ele, quase uma fantasia pro poder.
Quando Marçal enfia um boné na cabeça, no meio do debate, ele diz-sem-dizer "eu não tenho o menor respeito por esse espaço aqui, eu sou da internet". Deixa todos o adversários pensando “ele é louco", quando, na verdade, ele tá longe de ser louco, ele tá é jogando sozinho porque entendeu qual é a conversa em 2024: TikTok, imagens rápidas, frases que viralizam sem contexto, códigos rápidos e rasteiros. Quantas pessoas hoje assistem debate pra ouvir proposta de candidato, gente, de verdade? Nenhuma. Já a imagem faz outro caminho. Ela é rápida e comunica imediatamente, fala com a gente pra além do racional, é muito eficiente, principalmente num momento do mundo onde ninguém presta atenção em nada por mais de 30 segundos. O boné é tão icônico que já é um sucesso de vendas (insira aqui um emoji derretendo).
É um consenso que vivemos a Economia de Atenção, então por queeeeee na política seria diferente? Me diz? Eu também odeio que a conversa seja essa, mas o pragmatismo se impõe. Fato é: Marçal soa moderno, atualizado, falando a língua da internet, propõe, imageticamente, uma quebra, um jeito novo. E o revoltante pra mim, eleitora do Boulos, é pensar que a imagem moderna e progressista nessa história toda é justamente a do cara de extrema direita, extremamente conservador. E sim a roupa (junto com todo o restante) engana. E daí?
Vale ressaltar que só Marçal se propôs a correr risco - com o boné e a ausência de blazer. Ninguém mais. Boulos, inclusive, foi vestido igualzinho ao Nunes, outro adversário político com pautas tão diferentes que é surreal que a roupa seja a mesma. Ser "moderno" tem a ver com ser uma pessoa do seu tempo e, convenhamos, quando a gente fala de roupa, tem muito mais boné e camisa andando em São Paulo que blazer azul marinho com camisa branca. O terno e seus elementos são poderosos, mas são também seculares - pro bem e pro mal.
Kamala não precisa usar boné. Ela é uma mulher negra disputando a presidência dos EUA. Ela, o corpo que ela carrega, é a revolução. Ela está prestes a quebrar a maior barreira de todas, a chegar ao lugar mais poderoso do mundo! Tanto faz a roupa que ela usa, aliás, tá tudo certo que a roupa seja mais tradicional porque ela, sozinha, já simboliza muitas coisas, já tem muitas histórias pra contar. Ela já é a modernidade, ela já é o "tempo que vivemos hoje". A roupa não funciona igual pra todo mundo, vamos ter que pensar e fazer as associações. É por isso que a semiótica, sozinha, não resolve a moda e a moda, per se, também não se resolve. Taí a lindeza da antropologia pra dizer que a nossa subjetividade importa. Quem a gente é, de onde a gente veio, tudo isso importa. Marçal, homem-branco-hétero, precisa do boné. Precisa da performance. Nunes e Datena, talvez não precisem, são conservadores defendendo (com suas diferenças) pautas conservadoras. Tabata, é mulher, já está em um espaço de disputa diferente. Não se arrisca, mas ainda assim se comunica visualmente melhor que Boulos, esse, sim, precisava de uma imagem com mais intenção.
Por fim, meu ponto de vista é esse: ser uma pessoa do seu tempo importa, faz diferença. Pra ter uma fazer diferente, vai ter que arriscar e quem não tem coragem de arriscar nada está, na verdade, fadado a soar velho e antiquado. E isso pode ser bom ou ruim, dependendo da sua estratégia… o problema é quando a estratégia não corresponde ao que você quer e precisa, quando a estratégia é a falta de uma.
Enquanto nos EUA quem soa velho e antiquado é o Trump - que, de fato, tem pautas velhas e antiquadas; em São Paulo, infelizmente, é a extrema direita que soa jovem e inovadora. Eu não tenho dúvidas de que a estratégia de internet do Marçal aliada a uma imagem de "empresário contemporâneo" faz com que ele soe mais progressista que o Boulos. E isso é uma tragédia (anunciada).
Que tuuudo essa Newsletter! Thais, please, faça esse texto chegar no Boulos, precisamos de você como stylist dele, pra ontem! bjs
Eu tenho a sensação de que a estratégia do Boulos (que envolve essa estética velha, sem nenhuma graça ou diferencial) é atingir um público fora da esquerda, um público que ficou "órfão" de um PSDB forte e agora vagueia por campos políticos sem nenhuma grande convicção política. Longe de ser analista de estratégia política, me questiono muito qual é esse percentual de eleitorado que eles realmente acham que podem atingir, qual o impacto real (em % de votos) que esperam conquistar e se estão atentos pros eleitores centro-esquerda que estavam tendentes a "dar uma chance" ao Boulos, mas podem acabar optando por uma Tabata "progressista" diante de uma campanha muito mais estratégica que ela vem fazendo. Do alto da minha leiguice, torço pra que o time dele esteja atento a esses números e consiga tomar alguma atitude o quanto antes pra reverter os danos dessa campanha que, ao que parece, não tá atingindo ninguém nem agradando o eleitorado cativo.