Dia desses eu tava fazendo um pitching de um projeto que eu tenho. Era um pitching comum, como outro qualquer: eu tenho uma ideia e queria convencer duas mulheres (que admiro muito!) a colocarem dinheiro nessa ideia.
[aliás, se você é uma pessoa que leva as coisas pro pessoal, se ofende fácil e tem baixa tolerância para ouvir não, recomendo fortemente que você não tenha projetos pessoais. pqp é não, atrás de não e mais não e depois outro não.].
Eis que, pós pitching, enquanto eu respondia às dúvidas, veio a pergunta que eu mais odeio ouvir e que também mais me foi feita ao longo dos muitos anos em que eu estudo e falo sobre moda e gênero: "eu entendo o seu ponto, mas você não acha que quando uma mulher se veste de camisa, blazer, tons neutros e, sem se dar conta, faz essa referência ao universo masculino, a vida dela não fica mais fácil? Não é mesmo mais simples ser ouvida no trabalho quando a gente veste o que esperam de nós?".
Eu odeio essa pergunta porque ela sempre me foi feita por outras consultoras de estilo que não estavam preocupadas com nada além de seguirem dress code e prometerem que a roupa entrega, sim, equidade de gênero - quando todo mundo que realmente estuda esse tema sabe que não, não é verdade. E eu sempre fiquei furiosa com essa pergunta porque, sim, ela é o desejo de criar um buraco no meu insight de moda, meu melhor insight, talvez o único que eu vá ter na vida inteira hahaha. É muito difícil passar anos e anos atendendo clientes, estudando, trabalhando, analisando, percebendo que há ali um problema pra, só depois, falar em voz alta "ei, eu tive um insight!". Mas, de novo, não há jeitos de propor uma mudança de pensamento sem ser questionada sobre isso o tempo todo - e, pra ser justa, eu propus essa conversa no meu meio, mas eu não inventei a roda. Tem milhares de pessoas no mundo estudando algo parecido com isso.
Te juro que quando ouvi a pergunta tive vontade de levantar e ir embora. Me bateu um desânimo! A grande verdade sobre tomar muitos nãos é que você também aprende mais rápido de onde virá um sim. Essa conversa já era um não, por que insistir? E eu tenho muito de brasileira em mim, mas, trabalhando, eu poderia ser alemã. Se não vai rolar, vamo encerrar aqui mesmo e ir embora? A gente economiza tempo e simpatia. No geral, sou capaz de sentar, fazer uma reunião e ir embora em 15 minutos. Ir direto ao assunto, logo após um "bom dia". Preciso todo dia treinar meu pragmatismo com doses cavalares de gentileza e conversa fiada - que, no Brasil, é condição fundamental para o trabalho em equipe. E não é que eu não me interesse pelas pessoas, mas se eu saí de casa pra trabalhar, minha expectativa é sentar e trabalhar. Eu sooooofro com dinâmicas de grupo (a publicidade ama!), eu sofro com aquela conversa "quebra gelo" sobre o trânsito e o clima, que fazem a gente perder mais de meia hora antes de, realmente, começar no tema que tirou a gente de casa. Eu amo a conversa genuína, com pessoas que eu gosto e tenho interesse em saber realmente como estão. Eu sou muito boa ouvinte, de verdade. Mas eu sou ainda melhor no pragmatismo de fazer o que é proposto que eu faça. Admito, conheço pouco o conceito de procrastinar, eu amo resolver logo o que tem que ser feito.
Bom… não levantei. Não fui embora. Respirei fundo e disse que não, a roupa sozinha, não facilitava igualmente a vida de todas as mulheres. Uma mulher gorda, segue sendo vista como gorda. Uma mulher preta pode sofrer menos racismo se tiver cumprindo absolutamente todas as expectativas (o que é impossível, já que num grupo de 10 pessoas, só deus sabe quais seriam todas as expectativas a serem atendidas), mas ela segue sendo uma mulher com menos privilégios que uma mulher branca. A roupa não conserta isso. Assim como temos milhares de casos de assédio e estupro em que as mulheres estavam totalmente vestidas e escondidas. Então, não. A roupa não resolve. Roupa não existe sozinha, flutuando no mundo, roupa só existe em relação a outros temas. Roupa só existe no contexto social em que tá inserida.
Mas fiquei com essa pergunta na cabeça. Pela primeira vez. Tenho tentado cada vez ser menos reativa e digerir com calma o que me incomoda. Fiquei mais intrigada com a pergunta também porque veio de uma pessoa inteligente, que se interessa pelo tema. E, de verdade: é claro que a roupa ajuda. É claro que a gente tem convenções culturais do que pode e do que deve ser vestido em cada lugar. É claro que não vai funcionar ir trabalhar de biquíni, mesmo que você more nos 40ºC do Rio de Janeiro. É claro que temos códigos (que foram construídos, não são verdades universais) sobre o que é uma roupa formal e o que é informal. Mas é claro também que, como tudo que é criado através da cultura, é também contaminado pelo que a gente, como sociedade, carrega de preconceitos. Nem tudo que é "cultura" é bom. Cultura também é afetada pelo que há de ruim em nós.
A minha monografia da pós graduação se chamou "o tailleur como segundo sexo" justamente porque eu trazia a ideia de "Outro" da Simone de Beauvoir, que vou resumir demais nesse treco: "A humanidade é masculina e o homem define a mulher em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo (...) O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.". Ou seja, a mulher existe em referência ao homem. Ao homem (branco, sobretudo) é dado a neutralidade, o espaço de prestígio e poder, a tranquilidade de ser ele mesmo.
E aí, quando a gente fala de roupa de trabalho, fica muito claro que a roupa de trabalho da mulher, nasceu em referência à roupa masculina. Vou resumir pra vocês não me abandonarem, mas a ideia de "Dress for Success" foi criado por Tom Molloy, nos EUA dos anos 80 e ele sugere no seu livro dedicado a mulheres que elas deveriam fazer referência ao universo masculino (ou seja, ser o Outro), mas sem perder a feminilidade - afinal de contas, numa sociedade super conservadora, mulher não pode "se vestir de homem". A roupa de trabalho feminina já nasce em relação à masculina. Não nasce pra ser confortável, assertiva, eficiente. Nasce pra ser uma versão feminina do terno.
Por fim, a minha irritação com a pergunta é porque, sim. Usar roupas que se referem ao guarda roupa tradicionalmente masculino pode, mesmo, ajudar. Mulheres vão ser um pouco mais ouvidas, talvez tenham um poucos menos chances de serem assediadas e, quem sabe, alcancem algum respeito. Mas, de onde eu vejo, é o mesmo que defender que as pessoas gordas emagreçam pra pertencer aos ambientes gordofóbicos - ao invés de propor que a sociedade deixe de achar que o único jeito de ser bom é ser magro. É o mesmo que seguir justificando que cabelo liso é mais elegante, mesmo que isso seja obviamente uma herança racista. Nem tudo que funciona pode continuar funcionando como é. A função da moda precisa ser também questionar e não só se acomodar no que funciona ou não funciona. É também função da moda debater e pressionar as mudanças. Não é porque, culturalmente, estabelecemos que o terno é a ideia universal de poder, que cores neutras são as cores adequadas ao ambiente de trabalho - e, não se engane, cor é ainda um fator super determinante no gênero na nossa sociedade - que a gente tem que aceitar que, pra sempre, os códigos ligados ao feminino sejam lidos como mais fracos, menos profissionais. Aceitar isso é abraçar a desigualdade de gênero.
Anne Hollander diz “Todo mundo sabe que as roupas constituem um fenômeno social; mudanças no vestuário são mudanças sociais. E mais, diz-se que transformações políticas e sociais refletem-se no vestuário; mas, como os ternos masculinos permaneceram virtualmente os mesmos há 200 anos, sua continuidade deve ilustrar alguma coisa”. E sim, a continuidade inabalável do terno é também um jeito de dizer que apenas 6% dos CEOs do mundo são mulheres. Que apenas 1 em cada 10 países é liderado por uma mulher.
Voltando pra moda, tem um texto na Elle, muito bom, aliás, sobre um desfile da Simone Rocha - que eu AMO! E, por lá, Márcia Borges - pesquisadora de representações sociais e comportamentais da moda - dá a seguinte aspas "Essa dinâmica será, mais tarde, responsável pela conotação negativa das roupas ou de qualquer aspecto considerado feminino: se homem – que trabalha, sustenta, domina e estipula as regras – se veste de uma maneira sóbria, todo o oposto é considerado como frivolidade. E isso existe até hoje: para ser aceita como figura executiva, as mulheres muitas vezes são cobradas para se vestirem e se comportarem ‘como homem’. Os ombros são marcados, o cabelo encurta e por aí”.
Meu ponto, gente, é que eu caguei se o blazer funciona ou se não funciona porque isso não é o mais importante quando estamos tendo discussões sobre o cenário social, sobre simbologia, sobre sociedade, sobre o que NO GERAL as mulheres estão sendo cobradas em vestir. É claro que, como consultora de estilo, resolvendo o armário de uma cliente, eu tinha, sim, essa conversa. E é óbvio também que a solução que a gente aplica no caso individual, de resolver uma questão prática do vestir de uma pessoa física, não pode guiar toda uma discussão maior, sobre roupa e gênero. Eu, por exemplo, amo alfaiataria. E, reconheço, que as roupas feitas para os homens são infinitamente mais confortáveis. Mas a discussão não é sobre isso. Na vida pessoal, você escolhe o que te faz feliz. Sem julgamento, definitivamente. Não tenho nem interesse, honestamente, nessa discussão quando ela entra na intimidade de cada uma. Mas, quando a gente pensa na história da moda, na política de gênero, nos espaços de poder e prestígio… aí, sim, vamos ter que admitir: estamos, sim, fazendo referência a roupas tradicionalmente masculinas quando estamos em situações onde os homens dominam. Estamos, sim, sendo o segundo sexo, quando falamos de roupa de trabalho em espaços de poder.
Basta ver a Angélica, a Cláudia Raia e até a Daniela Mercury no Roda Viva - um estilo completamente diferente do que elas usam normalmente porque, afinal, o Roda Viva é um programa profundamente masculino - em 2023 foram 37 homens entrevistados contra 10 mulheres. Ou quando vemos a capa da Forbes. Ou quando olhamos para todas as mulheres na política.
Nessa discussão, sinceramente, o que me interessa é defender que os códigos femininos também sejam dignos de respeito profissional. Que usar babado e cor de rosa não seja sinônimo de frivolidade, de burrice, de incapacidade. Porque, sim, quando a gente admite que o único jeito de simbolizar senioridade, inteligência e sobriedade é mimetizando o universo masculino, estamos, sim, admitindo que o homem é o sujeito e nós somos o "Outro". E não, obrigada.
ps: sei que é muito tentador pensar que não existe mais roupa de homem e de mulher, mas, infelizmente, ainda existe. Vale pensar que quando falamos de roupas neutras para bebês que não sabemos o sexo, não estamos considerando vestido e tutu. Roupa ainda é uma das formas mais importantes de performarmos gênero na contemporaneidade. Coleções de moda agênero são, no geral, coleções de roupas masculinas que mulheres também usariam. Vale lembrar que homens gays que performam feminilidade sofrem mais preconceito e mais violência física. É infinitamente mais fácil convencer uma mulher a vestir um terno a convencer um homem hetero a usar um vestido - pra uma situação séria e não pro carnaval. Feminino ainda é sinônimo de ruim. Tristíssimo, mas, sim.
ps.2: eu não gosto de escrever com letra maiúscula. Acho feio, cafona, não gosto. Mas muita gente me escreve dizendo que tem dificuldade de ler quando não há maiúscula. Em respeito à diferença, temos maiúsculas… mas fica aqui o meu protesto, eu gosto mesmo é das minúsculas haha.
ps.3: e é claro que o pitching não virou dinheiro, como eu já havia previsto…
beijos e até semana que vem!
Afff, como eu amo ler seus textos! Amo, amo, amo! Refazendo o meme, esse e-mail poderia ter sido uma palestra <3
Muito obrigada por compartilhar seu conhecimento de anos de estudo e experiencia profissional e o seu tempo precioso, pra nos dar essa newletter gratuita e primorosa.
Dá vontade de imprimir e distribuir na rua.